“Suspeito de abuso sexual no metrô sai da prisão e afirma que é inocente
O advogado Walter Dias Cordeiro Junior, 46, preso em flagrante na sexta sob suspeita de molestar uma estudante de 21 anos dentro de um vagão do metrô, foi solto ontem.
Ex-corregedor da Administração, órgão do governo do Estado de São Paulo, Cordeiro Junior negou as acusações (…)
Cordeiro Júnior foi desligado da Corregedoria-Geral da Administração após a prisão. Ele era corregedor desde 2 de fevereiro de 2002. A Folha foi à casa de Cordeiro Junior. Pelo interfone do prédio o ex-corregedor afirmou: ‘Escreva apenas que sou inocente’ (…)
Segundo o delegado titular Valdir de Oliveira Rosa, da Delpom (Delegacia de Polícia do Metropolitano), Cordeiro Junior foi preso depois de ‘retirar o pênis ereto para fora das calças, comprimindo-o contra as nádegas da jovem, que passou mal e teve um pequeno desmaio’ (…)
Desde janeiro, a Delpom registrou 53 agressões sexuais contra mulheres no metrô. Três foram consideradas ‘importunações graves’. O crime de violência [sic] sexual mediante fraude pode resultar em penas de dois a seis anos de prisão. Cordeiro Junior foi o autor do relatório da Corregedoria da Administração Pública sobre a licitação para as obras da linha 5-lilás do metrô.
Em outubro de 2010, a Folha revelou que, desde 20 de abril daquele ano, já se conheciam os vencedores dos lotes 3 a 8 da licitação. Por causa da denúncia, o corregedor considerou que pode ter ocorrido ‘um conluio entre os licitantes’, que viciaria o procedimento”
A matéria se refere à violação sexual mediante fraude, que está descrita no artigo 215 de nosso Código Penal. Esse artigo diz que é crime “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”.
O texto desse artigo é mal escrito (já falamos de um outro problema dessa mesma lei aqui), e por isso gera muita confusão. Isso porque ele se refere a “outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação da vítima”. O crime é chamado de violação sexual mediante fraude, mas o texto da lei diz que esse crime pode ocorrer mesmo que não haja fraude, bastando que a vítima tenha tido sua livre manifestação de vontade impedida ou dificultada. Mas impedida como? De qualquer forma ou apenas quando sua vontade está impedida através de uma forma similar à fraude.
Para tentar entender, precisamos entender outros crimes. Isso porque a lei odeia repetição: não se pune a mesma conduta em mais de uma artigo da lei. Ou é homicídio ou é latrocínio. Ou é roubo ou é furto. E assim por diante.
Pois bem, a fraude ocorre quando ocorre uma mentira, engodo ou de alguma forma cria-se uma ilusão. A fraude sexual é aquela em que a pessoa mente para levar a outra a fazer sexo com ele. É o famoso caso do personagem Bozó, que se fazia passar por diretor de novela para levar as candidatas para a cama. Ele não era diretor de novela, mas usava dessa mentira para convencer as candidatas. Elas não fariam sexo com ele se soubessem da verdade.
No caso da matéria acima, não houve mentira ou ilusão. O que se alega é que a pessoa encostou seu pênis na vítima sem o consentimento dessa, enquanto ela estava entre ele e a parede. Também não houve penetração, segundo a matéria. Será, então, que a conduta do suspeito pode ser encaixada no “outro meio que impeça a manifestação da vítima”?
A melhor forma de responder essa pergunta é analisando o texto da lei.
A lei trata dos atos libidinosos sem consentimento quando estabelece o crime de estupro. Logo, ela não repetiria a mesma coisa no artigo seguinte. E ela também já havia tratado das pessoas que praticam atos obscenos em um outro crime, chamado de ato obsceno (artigo 233 de nosso Código Penal). E, por fim, ela já havia tratado das pessoas que incomodam outras ofendendo o pudor público na Lei de Contravenções Penais, em um crime conhecido como importunação ofensiva ao pudor (art. 61).
Logo, ao que tudo indica, o “outro meio que impeça a livre manifestação da vítima” se refere apenas aos meios que gerem um resultado similar ao da fraude, ou seja, meios que geram uma ilusão. Mas como isso pode ocorrer?
Imagine um produtor de TV que convença uma candidata a atriz a fazer sexo com ele com a promessa de conversar com o diretor responsável pela seleção do elenco para melhorar suas chances de contratação, mas sabendo que não conversará com o diretor. Ele não está mentindo em relação a quem é (ele disse que é o produtor e não o diretor) ou ao poder que tem (ele não disse que pode contratar) ou ao que pode fazer (ele não pode contratar, mas pode conversar com o diretor). E ele não está prometendo que ela será contratada. Logo, não houve fraude. Mas o resultado é similar ao de uma fraude: ele não irá conversar com o diretor e por isso as chances de contratação da candidata não melhorarão. Mas ela só fez sexo com ele porque estava convencida de que ele conversaria com o diretor. A conduta dele impediu a livre manifestação de vontade da vítima, ainda que não tenha ocorrido a fraude, e não tenha havido uso de força ou ameaça.
Mas repare que, se é assim que esse artigo deve ser interpretado, para que esse crime ocorra, seja por meio de fraude ou “outro meio”, a vítima precisa ter consentido. Ela não pode ter sido forçada. Se ela foi forçada, será estupro.
Mas a vítima na matéria acima em nenhum momento consentiu. A conduta descrita na matéria acima se encaixa muito mais em outro crime, seja o ato obsceno, se o juiz não julgar que houve um ato libidinoso mas apenas uma obscenidade, seja a tentativa de estupro, se o juiz julgar que a intenção era praticar um ato libidinoso (não se esqueça: segundo a vítima, elo suspeito a cercou dentro do trem). O crime só poderá ser punido como violação sexual mediante fraude como a polícia quer se o juiz julgar que “ou outro meio” significa qualquer meio, com ou sem consentimento da vítima. Mas, nesse caso. Em outras palavras, o juiz aqui não precisa apenas julgar se os fatos alegados ocorreram, mas também como interpretar a própria lei.
PS: Ao contrário do dito na matéria, o crime chama-se violação, e não violência, sexual mediante fraude. E, como acabamos de ver, para que o crime ocorra não é necessário que haja violência, apenas a violação. Se houver violência, é estupro, que é um crime ainda mais grave.