“Taubaté tinha central de rins, diz promotor
Uma central de remessa de rins para pacientes ricos de São Paulo. Assim o promotor Marcio Augusto Friggi de Carvalho definiu o trabalho do grupo de médicos de Taubaté (140 km de SP) que realizava a retirada de órgãos de pacientes para transplantes.
A afirmação foi feita ontem na exposição do promotor ao júri pedindo a condenação de três médicos por homicídio doloso (intencional). O urologista Rui Noronha Sacramento, o nefrologista Pedro Henrique Torrecilhas e o neurocirurgião e legista Mariano Fiore Júnior são acusados de utilizar diagnósticos falsos de morte encefálica para extrair rins de quatro pessoas em 1986. Eles negam. De acordo com Carvalho, pelo menos duas pessoas que receberam rins de pacientes em Taubaté foram rastreadas.
As investigações, diz ele, comprovaram que os órgãos foram para o hospital Oswaldo Cruz, onde havia uma fila própria de transplante. O custo da cirurgia variava de 100 mil a 150 mil cruzados novos - o equivalente a R$ 35 mil e R$ 70 mil, respectivamente (…)
Os réus não respondem por tráfico de órgãos, mas por apressar ou contribuir para a morte dos pacientes. A Promotoria usa laudos do Conselho Regional de Medicina, que, segundo ele, concluíram que não há elementos suficientes para atestar que os pacientes estavam com morte encefálica.
A defesa diz que a comprovação foi feita em exames clínicos e registrada nos prontuários (...)
O julgamento, que entra no quarto dia, deve terminar hoje. Se condenados, os médicos podem pegar de seis a 20 anos de prisão”
Se você extrai um órgão e alguém, você está cometendo um crime chamado de lesão corporal gravíssima. Isso porque a vítima perde aquele órgão para sempre. Não importa o consentimento da vítima: ainda que você não goste de sua perna e peça ao médico para amputa-la para você, ele não poderá fazer isso. Ele só pode amputar se for essencial para prevenir um mal maior como, por exemplo, a morte. Se o médico precisar amputar uma perna ou retirar um rim para salvar sua vida ele não estará cometendo uma lesão corporal porque estará agindo para proteger um bem mais importante (sua vida).
Pois bem, na matéria acima, se a acusação estiver correta (e não devemos nos esquecer que todos são inocentes até que haja uma sentença sem possibilidade de recurso), a excludente de ilicitude seria irrelevante porque eles aceleraram a morte de uma pessoa para tentar salvar a vida de outra através do transplante. A (quase) certeza de acabar com a vida do doador e a possibilidade de salvar a vida do transplantado não são equivalentes. Você tem quase certeza que alguém morrerá e não está sequer certo que o outro será salvo. As excludentes de ilicitude levam sempre em conta a proporcionalidade entre os bens jurídicos agredidos e protegidos. Se eles são desproporcionais, não há excludente.
Mas o caso acima é bem mais interessante do que isso.
Você não pode doar um órgão vital, como o seu coração ou seu cérebro, porque você só tem um de cada e sem eles não conseguirá viver. Mas você pode doar outros órgãos importantes, como um rim ou mesmo um pulmão, porque tem dois de cada. A matéria acima trata de rins. Logo, seria em teoria possível à vítima doar um de seus rins se isso não representasse um risco acima do normal para sua saúde. Se ela já estivesse com a saúde deteriorada e a doação fosse aumentar o risco de morte de uma maneira muito maior do que se ela fosse uma pessoa saudável, a doação não poderia acontecer.
Mas mesmo se a pessoa for totalmente saudável, o médico não pode simplesmente pegar o órgão: a doação só pode acontecer com o consentimento do doador. Caso contrário não seria doação, seria tomar.
E, pelo que a acusação diz, não houve consentimento das vítimas.
Mas o caso fica ainda mais interessante:
Para que alguém doe um órgão ele precisa estar vivo. Depois que você morreu, você não tem mais controle sobre seu corpo. Ele já não te pertence e o corpo passa a ser um objeto, como uma mesa ou um tapete. Só que um objeto especial, porque nele já houve vida um dia. Ele representa algo emocionalmente valioso para os amigos e familiares do morto. Logo, ele precisa ser tratado com respeito. Ele não é como uma mesa que você pode simplesmente cortar uma perna. É por isso que quem viola uma sepultura está cometendo um crime chamado violação de sepultura, e quem tira os dentes de ouro do cadáver está cometendo o crime de vilipêndio a cadáver. Tenta-se proteger a memória que o morto deixou naqueles que o amaram.
Mas isso não quer dizer que o cadáver é algo intocável. Tanto é assim que ele pode ser transformado em cinzas durante a cremação. Da mesma forma, a família do morto pode autorizar a doação de seus órgãos.
Mas o processo de doação segue algumas regras muito claras. Entre elas, que ele só pode ser feito por uma equipe médica autorizada depois de comprovada a morte encefálica da pessoa. Isso quer dizer duas coisas:
Primeiro, que um açougueiro não pode fazer a subtração dos órgãos. Apenas médicos especificamente autorizados a realizarem esse procedimento pelo SUS podem fazer o transplante ou enxerto de órgãos, tecidos ou partes do corpo.
E, segundo, a pessoa precisa estar morta. E esse é o ponto da matéria acima. Se a pessoa não estava morta, os familiares não têm poder de doar os órgãos. Ainda que a pessoa esteja em estado vegetativo, os órgãos ainda são dela e só ela pode dizer se quer doar. E, ainda assim, ela só pode doar m órgão sem o qual ela possa sobreviver e se essa doação não aumentar o risco à sua vida de forma inaceitável.
Depois de sua morte, a doação precisa ser autorizada pela família (cônjuge ou parente até segundo grau) e ser realizada por médicos.
Mas entre esses dois pontos, a pessoa precisa morrer. E a morte só ocorre, para a lei, depois que alguns procedimentos de ‘checagem’ forem feitos para se ter certeza que houve a morte encefálica (quando as funções básicas do cérebro param de forma irreversível, ainda que o resto do corpo esteja vivo através de aparelhos).
Se esses procedimentos não são feitos por dois médicos independentes (que não fazem parte da equipe de transplante), a equipe de transplante não pode retirar o órgão. E a família pode nomear um médico de confiança para acompanhar essa checagem.
Por fim, a lei que trata do assunto no Brasil (9.434/97) diz que se o crime é praticado em pessoa viva e resulta em sua morte, a pena de reclusão vai de oito a vinte anos, além de multa (art. 14, §4º). Já o crime que chamamos normalmente de ‘tráfico de órgãos’, não existe. Isso é apenas um termo genérico sem sentido jurídico. O que existe são os crimes de compra e venda de órgãos, tecidos ou partes do corpo humano (art. 15), que tem pena de três a oito anos; e recolher, transportar, guardar ou distribuir essas mesmas partes (art. 17) - pena de seis meses a dois anos - ou realizar o transplante em desacordo com a lei (art. 16): pena de um a seis anos.