“Defesa de réu desafia juíza do caso Eloá
O clima que começou a ficar tenso no final do primeiro dia do julgamento de Lindemberg Alves Fernandes, 25, piorou ontem, segundo dia do júri.
A advogada do réu, Ana Lúcia Assad, chegou a ofender a juíza Milena Dias e a bater boca com os advogados de acusação e com a promotora Daniela Hashimoto.
O acirramento pode ser usado por Assad como argumento para deixar o júri e adiar o julgamento, alegando cerceamento de defesa. Ela ameaçou abandonar o plenário ontem (…)
O ponto alto da discussão foi no depoimento da perita Dairse Aparecida Lopes. A advogada já havia terminado de interrogá-la, mas no final dos questionamentos da acusação repetiu pergunta sobre uma divergência na numeração de arma do crime. A testemunha já havia dito que foi um erro corrigido no processo.
A juíza disse que Assad já havia feito as perguntas e que poderia retomar a questão no final, no debate entre acusação e defesa. A advogada insistiu, alegando que ela era necessária pelo ‘princípio da descoberta da verdade real’.
Em tom irônico, a juíza disse que o termo não existia ou não se chamava assim. Assad retrucou: ‘Então, a senhora deveria voltar a estudar’.
A frase causou espanto na plateia e indignação na promotora, que afirmou: ‘Gostaria de alertá-la que, se houver desacato à autoridade, a senhora pode ser responsabilizada’.
A advogada afirmou que estava havendo cerceamento de defesa desde o primeiro dia de júri. Depois da confusão, a juíza autorizou a pergunta.”
O princípio é conhecido como ‘da verdade real’ e não ‘da descoberta da verdade real’, e significa que em um processo deve-se buscar a verdade dos fatos e que as provas, testemunhos etc servem como meio para buscar essa verdade. Disso, duas consequências: quem alega deve provar sua alegação através dessas evidências e não apenas ‘no grito’ e, se houver tensão entre a verdade formal (aquela que se deriva dos atos de um processo) e a real, dá se preferência à segunda. Em outras palavras, o processo serve para buscar a verdade dos fatos e não simplesmente para ser seguido cegamente. No contexto da matéria acima, faz sentido tentar alega-lo. A defesa queria fazer mais uma pergunta depois de terminada sua oportunidade de faze-la. Formalmente, ela não poderia mais faze-la, mas se o processo serve para buscar a verdade dos fatos, a pergunta deveria ser feita, independente de a defesa não a ter feito quando deveria.
Como quase toda criação dos teóricos juristas, esse princípio também tem seus pontos fracos. Por exemplo, levados às últimas consequências, não haveria por que ter prazos processuais ou mesmo um processo pois, afinal, o processo seria apenas uma ‘sugestão’ do que fazer na busca da verdade dos fatos (aliás, a busca da verdade a qualquer custo muitas vezes serve como argumento de práticas perigosas, como a tortura. Algo na linha 'os fins justificam os meios')
Mas a situação narrada acima é interessante por vários outros motivos:
Primeiro, em casos em que é difícil serem vencidos, a defesa pode tentar tumultuar o julgamento. Tumultuando-o, o julgamento pode ser suspenso ou mesmo anulado depois da sentença. Como o sistema recursal brasileiro não é eficiente e os tempos de prescrição são relativamente curtos, abre-se uma brecha para que ocorra uma prescrição.
Além disso, alguns advogados recebem por tempo (normalmente um valor mensal) e não pelos atos processuais (ou uma mistura de ambos). Ou seja, quanto mais tempo demorar o processo, mais o advogado ganha. A relação entre cliente e advogado não é de amizade mas de provimento de serviços e, como tal, seus interesses nem sempre estão totalmente alinhados (você tem o direito de supervisionar o trabalho que seu advogado está fazendo em seu nome. Se suspeitar que seu advogado está fazendo corpo mole, leve isso ao conhecimento da OAB de sua cidade imediatamente).
No caso da matéria acima, ninguém - além da advogada - sabe se ela estava tentando tumultuar o julgamento (e, se sim, por que), ou se ela de fato estava sentido-se cerceada.
Alegar cerceamento de defesa é uma forma comum que os advogados usam para tentar anular um julgamento. Um advogado jamais pode ter o direito de defender seu cliente tolhido. Parte dessa proteção é que o advogado é inviolável pelo que diz no tribunal (o mesmo vale para a acusação).
Por exemplo, se eu chamo Huguinho de homicida, eu o estou injuriando. Mas se eu, em um tribunal do júri, digo que fulano é um homicida, eu não o estou injuriando, ainda que o que eu disse não seja verdade.
Mas isso tem limites. E o limite é determinado pelo bom senso do que de fato é razoável e necessário para a defesa. O excesso pode ser objeto de dano civil ou mesmo um delito e pode até levar à perda da inscrição na OAB.
Acusação e defesa têm o direito de ir até o limite, mas não além dele. Chamar um magistrado de idiota durante o julgamento não é necessário. Apontar uma arma para a vítima ou baixar a calça, também não. Tudo isso sujeita o advogado a punições civis e criminais.
Impedir que o advogado chegue ao limite do bom senso e razoabilidade é cercear a defesa e pode levar à anulação do julgamento, mas se advogado extrapolar esse limite, ele arca com as consequências de seu excesso.
Por fim, vale a discussão se o magistrado precisa conhecer o tal princípio.
O magistrado deve conhecer a lei. Alguns princípios, pelo óbvio e importante que são, acabam entrando na lei. Por exemplo, o princípio da moralidade e legalidade na administração pública (art. 37 da Constituição). Esses os magistrados precisam saber de cabeça. Mas outros princípios são meras criações teóricas que alguns autores inventam como forma de resumir em uma expressão algo que tomaria páginas para explicar, ou de mostrar como são inteligentes. Qualquer pessoa pode inventar um princípio e um nome para ele. Basta criatividade. Alguns se tornam muito conhecidos e outros ‘não colam’ e permanece obscuros ou se tornam risíveis.
Muitos concursos públicos para as carreiras jurídicas no Brasil acabam dando prioridade à memória de quem consegue decorar o maior número de princípios. Deixa de ser uma prova para saber quem consegue melhor aplicar a lei e passa a ser uma competição sobre quem decorou mais livros (ou leu os mesmos livros que o elaborador da prova). Mas isso não significa que o juiz aprovado no concurso tenha a obrigação de conhecer princípios obscuros. O que ele tem obrigação de saber é qual é a lei aplicável àquele caso, seja lá como esse ou aquele autor de livro jurídico a chame. E desconhece-lo não é um cerceamento de defesa.