Segundo os médicos, o crack estimula a liberação de dopamina (um estimulante presente em nosso corpo) e impede sua reabsorção, mantendo-a em circulação por mais tempo do que o normal - o que gera uma sensação de euforia em menos de 10 segundos, e essa sensação dura cerca de 10 minutos. Se você quer saber como o drogado se sente durante aqueles 10 minutos, pense na sensação inicial de surpresa que você sentiu ao receber um presente inesperado, ao ganhar um primeiro beijo de uma pessoa amada ou ganhar alguma competição esportiva ou na loteria. Aquela sensação de euforia foi causada pela dopamina em seu corpo. Para o usuário de crack, essa é uma sensação que dura não alguns instantes, mas alguns minutos.
Terminado o efeito, o cérebro contrabalança o desequilíbrio causado pela droga, e o usuário sente uma depressão e cansaço profundos, o que o faz ‘necessitar’ usar a droga novamente. Ou seja, em vez de manter-se no meio termo, ele oscila entre extremos de euforia e depressão. Quanto mais ele usa, mais deprimido; e quanto mais deprimido, mais ele usa.
Por outro lado, se ele conseguir usar a droga novamente antes do fim de seu efeito, ele se manterá em um estado contínuo de euforia. Mas o cérebro não está preparado para lidar com o efeito de uma liberação prolongada de dopamina (é por isso que a sensação de euforia após ganhar um presente surpresa dura tão pouco), e a cada nova ingestão da droga, mais curto é o efeito. Para manter o mesmo nível de euforia, o usuário necessita aumentar a intensidade do consumo. E, para complicar, enquanto ele estiver eufórico, ele não irá dormir. Se você já tentou ficar mais de um dia sem dormir saberá como isso altera seu estado mental e sua capacidade de raciocínio. Associe isso à paranoia causada pela droga, e tem-se um estado perigoso de alteração psíquica.
A consequência disso tudo é que o crack torna o usuário altamente dependente e a recuperação muito difícil (mas não impossível), não só por causa da dependência física que ele causa (a ‘necessidade’ de sair da depressão ou manter-se eufórico), mas também psicológica (quem não gostaria de viver a vida sentindo a sensação do primeiro beijo de uma pessoa amada?).
Essa dependência profunda torna o trabalho da polícia, profissionais de saúde e dos serviços sociais ainda mais difícil. Primeiro, porque o dependente ‘necessita’ da droga ou algum outro substituto para sair da depressão gerada pelo uso. Simplesmente impedir o uso em determinado local não vai terminar com a dependência. Apenas move o problema de um local para o outro.
Segundo, porque o grau de dependência causado pela droga, e a consequente depressão, são tais que o usuário deixa de ter um processo cognitivo eficiente. Em outras palavras, ele deixa de ‘pensar direito’ (é por isso, por exemplo, que é comum roubarem e furtarem em locais que serão evidentemente presos, ou deixarem-se fotografar pelos jornais com tanta facilidade). O usuário não consegue perceber-se.
A cracolândia existe porque ela torna o processo de obtenção de drogas ‘eficiente’: o drogado não precisa ir atrás da droga. Se ele permanece no mesmo local, o traficante o achará com facilidade. Traficantes têm pontos de vendas. Se seus usuários não estiverem mais na cracolândia, estarão comprando e usando drogas em outro local. Ou os traficantes simplesmente mudarão de endereço para fornecer aos usuários em outro local, ou esses usuários estarão comprando de outros traficantes. Como traficante não gosta de sair no prejuízo, isso gerará um conflito para o controle de novos pontos.
É por isso que alguns especialistas defendem uma solução abrangente: simplesmente impedir o acesso a um local não basta. É preciso eliminar a demanda (submeter os usuários a tratamento) e a oferta (evitar que os traficantes se reinstalem e evitar que novos usuários tenham acesso a drogas).
E esse último ponto, embora lugar comum, é importante de ser entendido. Uma vez que as pessoas tenham acesso a drogas em geral e às derivadas da cocaína em especial, a recuperação é muito difícil e depende de três fatores: a eliminação do acesso ao traficante (parte do que a PM está tentando fazer na Cracolândia), a disponibilidade de meios de tratamento e a vontade do usuário. O período de recuperação é longo e quase sempre envolve internação e desintoxicação, além do acompanhamento psicológico. E isso tem um grande custo financeiro e emocional. A consequência é que uma boa parte dos usuários (estudos diferentes têm resultados muito diferentes*) jamais consegue se recuperar. Isso não quer dizer que nada deva ser feito, mas que a melhor forma de gerar um resultado positivo para os usuários atuais é atacando o problema de todos os lados.
Aliás, uma da razões pela qual algumas cidades e países conseguiram diminuir o número de usuários é trágica, mas compreensível, e está menos relacionada à recuperação dos usuários e mais relacionada à entrada de novos usuários. Como os usuários têm uma expectativa de vida muito menor que o resto da população (não só pelos problemas físicos causados pelas drogas, como pelos riscos de overdose e pela violência do mundo no qual vivem), eles foram morrendo. Como as políticas públicas conseguiram evitar que um número igual de novos usuários tivessem um primeiro contato com a droga, os números absolutos caíram.
E aí entram três problemas ainda mais controversos em nossa sociedade: como reintegrar a criança de rua à sociedade, já que ela está muito mais exposta ao universo da droga; como lidar com a gravidez indesejada e como lidar com a adoção/guarda da criança (já que muitos dos novos consumidores nascem e crescem com pais envolvidos com drogas).
* O problema de avaliar se um tratamento funciona é mais complexo do que parece: depende se devemos tratar o tratamento que é voluntário e o que é imposto como pena pela Justiça de uma mesma maneira; de quanto tempo de abstinência é necessário para se considerar como ‘problema resolvido’; exatamente o que é considerado um ‘problema resolvido’; se alguém que deixa de usar uma droga e passa a usar outra pode ser considerado ‘problema resolvido’; como ter certeza que a pessoa não está mais usando a droga; se um paciente que recai no uso e volta a se tratar novamente pode ser considerado um único caso etc.