"Só um a cada sete passageiros passa pela fiscalização em Cumbica
Se apenas uma a cada sete pessoas é fiscalizada no aeroporto internacional de Cumbica (Guarulhos) e, dentre essas, apenas uma em 25 é punida, isso significa que nem sequer dois passageiros em cada Airbus A-330 que liga São Paulo a Miami são pegos pela Receita Federal.
É difícil crer que todos os outros 333 passageiros a bordo respeitaram suas cotas.
A matemática é simples: o crime passa a compensar quando a probabilidade de punição vezes o tamanho da punição é menor do que o potencial ganho com a atividade criminosa.
Se a probabilidade de ser punido é de meros 0,57%, e mesmo assim ainda se pode, em alguns casos, pagar a multa e tributos devidos sem perder o produto, o ganho com o descaminho é certo: 174 passageiros passam incólumes para cada um que é punido no aeroporto.
E vale a pena o combate aos sacoleiros?
O número de apreensões aumentou em 123% no último ano. Mas o número de fiscais no aeroporto saltou em 30% e hoje o contingente está por volta de 80.
Com salários acima de R$ 13 mil, a arrecadação das 94 apreensões em um total de mais de 16 mil desembarques diários provavelmente ainda não justifica o custo gerado ao erário"
Esse é um exemplo interessante sobre como empresas e muitas pessoas calculam se vale a pena agir ilegalmente.
A matéria fornece três informações importantes: apenas uma em cada 7 pessoas é fiscalizada. Entre as fiscalizadas apenas uma em 25 é punida. E a punição pode ser o pagamento do tributo devido (+ multa) ou a perda da mercadoria descaminhada.
Vamos imaginar dois cenários:
Primeiro, que todas as pessoas que são fiscalizadas e estão fazendo algo errado são pegas e punidas.
Nesse caso, a probabilidade de ser punida é de 14% (1 / 7 = 14%). Se supormos que a metade das pessoas que trouxeram o produto ilegalmente acaba apenas pagando os tributos devidos e a outra metade o perde, isso significa que o cálculo é: 7% x valor do produto apreendido + 7% x valor do tributo/multa.
Digamos, por exemplo, que o produto custe US$10 mil e sobre ele incida 50% de tributos que deixaram de ser pagos, mais eventuais multas.
Agora digamos que essa pessoa, se escapar da fiscalização, consiga vender o produto por US$15mil. Nesse caso, a cada 14 viagens ela perderia o produto uma vez e teria de pagar US$5 mil de tributos mais multa uma outra vez. Mas nas outras 12 viagens ela conseguiria vender o produto com lucro. Isso quer dizer que, depois de 14 viagens, ela tem um lucro de US$50 mil, ainda que vez por outra ele seja pega.
Mas digamos que, infelizmente, os agentes da Receita não detectem todos os produtos trazidos ilegalmente mesmo dentre as pessoas que eles param na fiscalização. Digamos, por exemplo, que todas as pessoas paradas na fiscalização tenham alguma irregularidade mas que a Receita só pegue uma em cada 25. Nesse caso, a probabilidade de ser punida cai para 1/7 x 1/25 = 0,57%. Ou seja, apenas uma em cada 175 pessoas é pega.
Se supormos novamente que a metade das pessoas que trouxeram o produto ilegalmente acaba apenas pagando os tributos devidos e a outra metade o perde, isso significa que que a cada 350 viagens, a pessoa irá perder o produto uma vez e ter de pagar tributos e multa outra. Se ela continuar vendendo os que escaparam nas outras 348 viagens com um lucro de US$5 mil (cada), ela vai gerar um lucro de US$1,73 milhão ao final das 350 viagens!
Nos dois exemplos deixamos o custo das passagens de lado, mas eles são relativamente baixos em relação ao lucro potencial (por volta de 10% do lucro).
Como a matéria explica, há quatro maneiras de evitar que isso aconteça:
Primeiro, fazer com que todas as pessoas sejam fiscalizadas. O problema com isso é que o custo de fiscalização pode não compensar o retorno tributário. O número de fiscais da alfândega teria que aumentar e a economia do país sairia perdendo com dezenas de milhares de pessoas gastando horas nas filas de fiscalização.
Segundo, podemos aumentar o valor da multa e do tributo de quem é pego. Por exemplo, se a multa passar a ser de duzentas vezes o valor do produto, mesmo que a pessoa seja pega uma única vez, ela teria de pagar US$2 milhões de multa. Trazer o produto deixaria de compensar. É isso, por exemplo, que é feito com a pirataria.
A terceira solução é diminuir o preço dos produtos nacionais. Se os preços caem, a sacoleira terá de baixar o preço de seu importado para continuar competitiva. No exemplo acima, se a margem de lucro, por exemplo, for menor que US$500 em cada viagem, o lucro não cobriria seu custo com a passagem para ir aos EUA.
A quarta solução é adotar cotas maiores. Lei é lei, e deve ser respeitada. Mas quando praticamente todo mundo a desrespeita, pode ser indicativo de que a lei não foi bem pensada e precisa ser revista. Até 2005 era crime trair o cônjuge (adultério) e a pessoa poderia ficar presa até 6 meses. Mas muita gente cometia o crime. Até 1977 não havia divórcio no Brasil, mas muita gente desquitada mantinha uma segunda família. Até 2009, vários crimes sexuais exigiam que a mulher fosse 'honesta' para que houvesse crime. Em todos os casos as leis foram mudadas para melhor refletirem a realidade de um país que mudou. Se tanta gente traz produtos acima da cota, talvez o problema não esteja nas pessoas, mas na lei.
Existe uma quinta solução, mas praticamente impossível no caso acima: encarecer os produtos importados. Seja entrando em acordo com os produtores americanos ou com o governo de lá para aumentar o preço (mas ninguém racional quer vender menos), seja enfraquecendo artificialmente o Real (o que teria repercussões em todo o resto da economia, inclusive encarecendo nossa dívida externa).
PS: O cálculo acima foi o mesmo raciocínio usado pela Ford nos EUA, na década de 1970, quando eles descobriram que o Ford Pinto explodia ao colidir: fazendo os cálculos descobriram que o custo de fazer um recall era maior do que pagar as indenizações às famílias das pessoas que eventualmente morressem nas explosões. O que a Justiça americana fez foi adotar a segunda opção: aplicou um multa tão alta que a empresa nunca mais tentaria calcular o custo de uma vida humana.