“O reitor da UnB (Universidade de Brasília), José Geraldo de Sousa Júnior, disse ontem que, mesmo com o consentimento dos calouros, a aplicação de trotes humilhantes não é justificável.
Na última terça-feira, alunos da faculdade de agronomia organizaram trotes em que os calouros nadavam em uma piscina de lama com pedaços de vegetais, legumes, folhas, galhos e lixo.
Os veteranos também mandaram os recém-chegados lamberem leite condensado em uma linguiça, encapada por preservativo.
Para o reitor, o assunto terá de ser debatido na UnB para a criação de campanhas contra os trotes. 'Precisamos romper esse círculo de violência.'
A coordenação do centro acadêmico de agronomia negou que tenha havido exagero nos trotes aplicados."
Esse assunto é interessante. Primeiro, porque dependendo do que for feito, podemos estar diante de um delito (por exemplo, pode ser uma injúria xingar o calouro). Também podemos estar diante de um delito dependendo das conseqüências do que for feito (por exemplo, uma lesão corporal, se o calouro se machucar, ou até mesmo homicídio, se ele morrer em decorrência do trote). Até mesmo cortar o cabelo ou a barba do calouro pode ser entendido como uma lesão corporal, já que sua integridade física pode estar sendo ofendida.
Mas, o mais interessante é que ele trás à luz o debate sobre o direito de dispor do próprio corpo. Existe no Brasil uma tensão entre o direito individual e o direito social quando a questão do corpo é debatida. Por exemplo, a lei proíbe o aborto ou a amputação desnecessária de um membro, ainda que o corpo pertença ao indivíduo que está se impondo a lesão. Mas a lei não proíbe a tatuagens, piercings, brincos, alargadores de orelha, tatuagens de córnea, branding (‘tatuagens’ feita com ferro e fogo) ou pessoas que decidem bifurcar a língua. Em algum lugar entre um brinco e uma amputação existe um limite, mas a lei não estabelece com precisão onde a autonomia sobre o corpo termina e onde o poder do estado intervir começa. Mas, depois que essa linha invisível é cruzada, não adianta que a pessoa tenha dado permissão para que seu corpo seja violado: ainda será um delito. Não adianta a gestante autorizar o aborto ou alguém autorizar que seus dedos sejam amputados porque ele quer parecer diferente: não pode.
Ainda sobre o consentimento, nos trotes, para complicar o assunto, existe ainda a questão da coerção. Existe um crime no Código Penal chamado constrangimento ilegal (artigo 146), que diz que é crime forçar alguém a fazer alguma coisa através de uma grave ameaça. Não importa se essa ameaça é física (cercar o calouro) ou verbal (dizer que vão ‘marcar’ o calouro). O Código não define o que é uma grave ameaça. Fica a critério do magistrado decidir o que é uma grave ameaça, e ele pode bem entender que o calouro está sofrendo uma grave ameaça quando está rodeado por vários ‘veteranos’, ou quando está sujeito a potenciais humilhações caso não dê seu ‘consentimento’ ao trote.