“Governo cedeu a lobby, afirmam importadoras
A Abeiva (associação dos importadores) disse que o aumento do IPI para veículos com menos de 65% de peças nacionais é lobby de montadoras contra concorrência de importados e contestará a medida na Justiça. José Luiz Gandini, presidente da Abeiva, disse que a disputa com os importados impediu a elevação dos preços dos nacionais e sugeriu que China e Coreia acionem o Brasil na OMC (Organização Mundial de Comércio)”
E por que outros países podem processar o Brasil na OMC? Afinal os países podem fazer o que quiserem com seus tributos, já que são soberanos, certo?
Sim, eles são soberanos, mas como países soberanos eles podem assumir obrigações internacionais. A maior parte dessas obrigações internacionais tem valor apenas político. Quantas vezes você já ouviu falar de o Brasil estar sendo processado na OEA? A razão pela qual o governo brasileiro não está nem aí para isso é porque as condenações da OEA têm valor político. A OEA não pode fazer nada além de dizer que o país errou e deve mudar. Exceto se alguns de seus membros resolverem iniciar uma guerra contra o Brasil.
Mas a OMC é diferente. Ela é um dos poucos casos de direito internacional em que um acordo tem o poder de introduzir punições reais a um país, sem que haja a necessidade de se iniciar uma guerra contra aquele país. Isso porque todos os países, em menor ou maior grau, importam e exportam produtos e serviços, e transacionam dinheiro. A OMC permite punições através de sanções econômicas impostas nessas transações. Por exemplo, o país que ganha uma causa na OMC, em vez de bombardear o país que errou, simplesmente aumenta o imposto de importação de alguns produtos originados do país que perdeu o processo, fazendo com que os produtos daquele país se tornem mais caros (e por isso menos competitivos) que não só os produtos locais, mas também mais caros do que os produtos importados de outros países. Assim, o país que perdeu a causa exporta menos, fica menos rico e, como consequência do dinheiro que perdeu, ‘recebe um incentivo’ para se ajustar ao acordo internacional, ou sofrerá novas sanções econômicas que o faz perder ainda mais dinheiro e se tornar ainda menos competitivo internacionalmente.
Óbvio que não é uma solução perfeita. Alguns países continuam agindo errado. Além disso, o dano já foi causado e a punição não vai conseguir conserta-lo, mas é a melhor solução encontrada até hoje.
E quais são as regras da OMC? Elas são muitas e complexas (aliás, não se trata de um acordo, mas de dezenas de acordos firmados desde 1947). Mas, em resumo, as duas principais regras são bem simples de serem entendidas.
A primeira é a que estabelece o princípio da nação mais favorecida (most-favoured nation principle). Ele estabelece que um país deve receber um tratamento tão benéfico quanto o tratamento mais benéfico concedido a outro país. Por exemplo, se o Brasil estabelece um imposto de importação de produtos angolanos de 10%, e esse é o menor imposto de importação para produtos importados para o Brasil, os produtos importados de Moçambique também devem ser tributados a 10% porque os produtos importados de Moçambique têm o direito de serem tratados da mesma forma como os produtos importados da nação mais favorecida (Angola). Existem várias exceções (por exemplo, os benefícios concedidos através de acordos regionais – como o Mercosul – não se estendem a outros países), mas essa é a regra geral.
A segunda regra básica é o princípio do tratamento nacional (national treatment principle). Ele diz que os produtos importados devem ser tratados da mesma maneira que os produtos locais. Em outras palavras, um governo não pode tratar produtos importados diferente da forma como trata os produtos locais. Existem ainda mais exceções para essa regra do que para a regra anterior, mas essa é a regra geral. E é aqui que está o problema apontado pela matéria acima.
O governo aumentou o IPI para todos os produtos importados, independente de sua origem, logo o primeiro princípio não foi ferido. Mas ele está estabelecendo uma discriminação direta em relação a produtos importados se compararmos com os produtos nacionais, e isso fere o segundo princípio explicado acima. Isso quer dizer que os governos dos países onde estão as montadoras que forem prejudicadas podem processar o governo brasileiro. E se ganharem, poderão impor sanções econômicas contra produtos brasileiros importados e seus territórios, fazendo com que o Brasil exporte menos.
E por que os países assinam um acordo como esse, que basicamente restringem a margem de manobra dos governos? Porque eles ganham mais do que perdem. Ganham em dois sentidos: primeiro, porque da mesma forma como o Brasil deve respeitar as regras do tratado, os países para os quais o Brasil exporta também deve fazê-lo, e logo todo mundo ganha com regras claras e simples. Segundo, e esse é o ponto mais importante, porque os países se tornam mais eficientes economicamente porque seus produtores internos não podem se esconder atrás de medidas protecionistas.
O protecionismo econômico normalmente funciona como uma proteção à ineficiência. É como um único homem em uma ilha onde só há mulheres: não importa quão fora de forma ou chato ele seja, se elas quiserem ter um filho, terá que ser com ele. Em nossa analogia, o homem é o 'produtor nacional' e as mulheres as 'consumidoras'. Já se há possibilidade de homens de outros países visitarem a ilha (produtos importados), as mulheres (consumidoras) passam a ter opção entre o chato local e os visitantes cordiais e bonitões estrangeiros. Ou o homem local entra numa academia e se torna educado (se torna mais ‘eficiente’), ou as consumidoras locais vão preferir os ‘importados’. A ideia por trás do livre comércio não é ajudar os países de onde os homens vem, mas ajudar as mulheres locais, que até então não tinham opção. As consumidoras locais é que se beneficiam do ganho de eficiência trazida pela importação. Se elas não se beneficiarem, não 'comprarão' os homens importados e o país de onde eles vêm não se beneficiará. Os países exportadores só se beneficiam na medida em que fornecem algo melhor do que aquilo que é fornecido localmente.
Os mais velhos, por exemplo, vão se lembrar da qualidade dos carros e computadores nacionais antes de 1990, quando essas duas industrias brasileiras se beneficiavam de protecionismo.
Por fim, reparem que são os governos que podem processar e ser processados, e não as empresas ou pessoas diretamente prejudicadas. Os tratados da OMC só estabelecem direitos e obrigações para governos nacionais.