“Ela pagou para ser morta
‘Mãe, adeus. Consegui o que queria. Di, sinto a sua falta... Desculpe, vou tentar ser feliz’. A carta, escrita à mão trêmula, foi o último comunicado da advogada Giovana Mathias Manzano, 35.
No dia 13 de junho, ela foi assassinada com três tiros, um na nuca e dois na cabeça, num canavial de Penápolis (479 km de São Paulo).
Para a polícia, familiares, amigos e colegas de curso, não há dúvida: Giovana planejou a própria morte.
Contratou o matador, pagou em dinheiro, escolheu o local do crime e a maneira como seria morta. Tudo após anos de luta contra a depressão. ‘Quis isso, não aguentava mais sofrer’, escreveu.
Sem coragem para o suicídio, achou alguém para matá-la, um jovem ‘sem amor à vida’, segundo a polícia (…)
A confissão do assassino, Wellington de Oliveira Macedo, 21, que estava na cadeia até 18 de maio, por tráfico, só ocorreu depois que a polícia reuniu todas as provas (…)
Parentes e amigos ajudaram a esclarecer, relatando o motivo: tristeza, uma das consequências da síndrome de borderline, transtorno psiquiátrico diagnosticado pelos especialistas que a atendiam, caracterizado pela instabilidade de humor, angústia constante e profunda causada por medo de abandono (...)
Giovana não suportava a falta do marido, que, segundo as amigas, passou a não atender mais suas ligações"
No sábado falamos que, para nossa lei, viver é um direito e não uma obrigação. Por conta disso, o suicídio não é um delito. Hoje vamos usar a matéria acima para continuar falando do assunto, sob um prisma diferente.
Embora cometer suicídio seja um direito, ajudar alguém a cometê-lo é um crime. Ele se chama “induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio” e está no artigo 122 de nosso Código Penal. Reparem que a lei se refere a três verbos diferentes: induzir, instigar ou auxiliar. Basta que o criminoso aja conforme um deles e a vítima (a pessoa que quer se matar) morra ou sofra lesão corporal grave.
No caso de alguém pedir ajuda para se matar, trata-se do auxílio. É o que acontece, por exemplo, com a eutanásia. Não existe o crime de ‘eutanásia’ no Brasil. Quem ajuda outra pessoa a matar-se, que é o que é a eutanásia, está auxiliando ao suicídio e responde de acordo com o artigo 122, descrito acima.
Se alguém ajuda um suicida que não está doente, não se trata de uma eutanásia na linguagem comum, mas na linguagem jurídica o crime continua o mesmo: auxílio ao suicídio.
Só que a matéria acima não está tratando de um auxílio ao suicídio. Não foi a vítima quem tirou sua própria vida. O criminoso é quem deu o tiro. Logo, trata-se de um homicídio. É o mesmo que ocorre quando o doente está em um estado tal que, embora ele queira morrer, ele já não tem força física para usar a droga que seu amigo comprou para que ele pudesse se matar: se o amigo aplicar a droga que vai causar a morte, trata-se de homicídio.
A diferença é saber quem é que tomou a atitude (agiu) que levou de fato à morte. Quem, por exemplo, apertou a ampola que injetou a droga ou que, como no caso da matéria acima, apertou o gatilho.
Mas há mais um último detalhe mencionado na matéria: ela ficou deprimida porque o ex-marido deixou de atender seus telefonemas. Logo, o marido também responde por indução ao suicídio? Afinal, como acabamos de ver, há três verbos no artigo 122.
O importante aqui é que não há indução culposa, só dolosa. Ou seja, você só responde pelo artigo 122 se você quis ou assumiu o risco. No caso acima, óbvio que ele não quis, mas ele assumiu o risco? Assumir o risco significa que a pessoa previu (ou deveria ter previsto) o risco de gerar o resultado através de sua ação (ou omissão), sabia que era muito provável que o risco se materializaria, e foi em frente assim mesmo. E isso não ocorreu. Não houve o vínculo direto entre sua conduta e a morte da vítima. Foi a depressão, e não a separação que levou ao suicídio. Milhares de outros fatores – sociais, biológicos, psíquicos, químicos ou o que seja – contribuíram para a depressão. Não dá pra dizer que foi aquela rejeição a responsável pelo suicídio.
E existe um outro detalhe sobre a lógica jurídica que é importante entendermos: se ele não pudesse se divorciar porque ela poderia se suicidar, ele estaria, na prática, condenado a algo: a manter-se casado para sempre. Óbvio que a lei não pode ‘condenar’ alguém a um casamento-escravo só porque o outro cônjuge pode ficar deprimido e a depressão pode gerar um suicídio. Se ele, por outro lado, sabendo que ela estava clinicamente deprimida, dissesse algo como “você tem de se matar porque é louca” ou “por que você não se mata? Você nunca vai encontrar ninguém e vai morrer de solidão”, aí sim, a justiça poderia compreender que ele estava assumindo o risco de levar (‘instigar’ ou ‘induzir’) aquela pessoa que ele sabia que estava deprimida a matar-se. E isso seria crime.
Amanhã vamos continuar falando do assunto sob um terceiro ângulo: a desistência eficaz e a nulidade contratual.