“Todos conhecemos o peso das palavras. Mas qual nome dar a uma sociedade cada vez mais marcada pela exploração política do medo do outro, pela estigmatização de estrangeiros e pela obsessão identitária? O dicionário político do Ocidente criou um duro nome para tal deriva autoritária.
Se lembrarmos dele, talvez sejamos obrigados a dizer que um fantasma assombra a Europa: o fantasma de uma nova forma de fascismo ordinário.
A Suíça assumiu a vanguarda desse processo. Há alguns dias, ela jogou na lata de lixo o que restava de sua democracia ao aprovar, por plebiscito, uma lei de dupla pena para crimes cometidos por estrangeiros. Um imigrante que, por exemplo, assalte um banco suíço especializado em lavagem de dinheiro, terá de cumprir a pena prevista no Código Civil e, posteriormente, ser expulso do país. Ou seja, ele cumpre uma dupla pena.
Tal aberração jurídica simplesmente quebra o princípio fundamental da democracia, a saber, a isonomia diante da lei. A noção de que todos, à exceção de inimputáveis, como as crianças e os loucos, estão submetidos às mesmas leis é a base da democracia. Mas, ao criar leis especiais para crimes de imigrantes, a Suíça quebra a isonomia entre delitos e penas e instaura um regime de discriminação legal (...)
Que tais leis aberrantes tenham sido aprovadas por plebiscito só demonstra uma distorção intolerável do mecanismo plebiscitário. A noção de plebiscito tira sua legitimidade da ideia de que a soberania popular se manifesta como totalidade. Ou seja, a totalidade da sociedade, que se organiza de maneira igualitária, exprime sua vontade.
Mas leis discriminatórias contra grupos religiosos, raciais ou nacionais quebram a noção de totalidade igualitária da vida social, inaugurando uma lógica de massacre de minorias pela maioria. Por isso tais leis nunca poderiam ser objeto de um plebiscito (...)”.
Sem entrar na discussão a respeito dos problemas ou méritos do que foi aprovado na Suíça, existem três erros nessa matéria importantes para entendermos as leis no Brasil: primeiro, na Suíça (assim como o Brasil e os demais países europeus continentais ocidentais, como a França, Espanha, Itália, Alemanha e Portugal), existe o que chamamos em direito de sistema codificado, ao contrário do sistema jurisprudencial adotado, por exemplo, no Reino Unido, EUA e Irlanda). No sistema de códigos, os magistrados interpretam as leis, enquanto no jurisprudencial ele interpreta princípios e sua interpretação passa a ter, por sua vez, força de lei. Os códigos são especializados em determinados temas, como meio ambiente, tributos etc. O Código Civil suíço, assim como no Brasil, não prevê nenhuma pena a quem comete delitos simplesmente porque ele não trata de delitos. O código que trata de crimes na Suíça, assim como no Brasil, é o Código Penal. Para quem tiver interesse, há aqui uma cópia em alemão, em francês e em italiano (três das línguas oficiais do pais).
O segundo erro é a confusão entre plebiscito e referendo. O que ocorreu na Suíça foi um referendo e não um plebiscito. O referendo ocorre depois que existe uma lei (ou um projeto de lei) pronta(o). Ele simplesmente pergunta aos eleitores se querem que tal lei vigore ou não. Os eleitores sabem exatamente o que estão votando. Foi o que aconteceu, por exemplo, no Brasil com o referendo a respeito do porte de arma. A lei já existia, e o referendo era para saber se um determinado artigo seria aplicado ou não (e a decisão foi de não aplicá-lo). Já o plebiscito é completamente diferente: nele as pessoas são chamadas a opinar antes que exista uma lei ou projeto de lei. Suas opiniões informam – e apenas informam o legislador que pode concordar ou não (e mesmo ter interpretações diferentes da opinião expressa nas urnas) – quando este for elaborar a lei. No referendo, ao contrário, a decisão das urnas vincula o legislador. Ele não pode discordar do que os eleitores decidiram. Plebiscito foi o que ocorreu no Brasil em 1992 quando os eleitores foram chamados às urnas para decidirem sobre o sistema e a forma de governo. Se houvéssemos escolhido uma monarquia, o legislador teria de interpretar o que isso significaria (quem seria o rei, como o parlamento funcionaria, como se daria a sucessão etc). Nada disso estava definido porque não existe nem lei nem projeto de lei pronto. Estávamos votando em uma idéia.
No caso da matéria acima, o que foi votado foi um projeto de lei de iniciativa popular. Nele os eleitores aprovam um projeto de lei que vincula o legislativo, ou seja, o legislativo não pode rejeitar o que foi aprovado pelos eleitores. Isso é exatamente o que acontece em um referendo. A única diferença é que no referendo que temos no Brasil a proposta votada é formulada pelo próprio Legislativo, enquanto no caso da matéria acima a proposta foi apresentada por uma parte dos eleitores. Depois de aprovado pelos eleitores, cabe ao legislativo o dever de formular as regras precisas de como aquela decisão será implementada. Exatamente como ocorre com um referendo.
No caso do referendo feito no dia 28 de novembro, foram feitas três perguntas sendo que duas delas se referiam à expulsão dos estrangeiros infratores. A primeira era se os eleitores aprovavam o projeto de iniciativa popular ("Você aprova o projeto de lei de iniciativa popular de 18 de junho de 2010 a repeito da expulsão de estrangeiros infratores?”) e a segunda era se preferiam um contra-projeto a respeito do mesmo assunto apresentado pelo governo. A primeira alternativa foi aprovada com 52,9% dos votos e a segunda foi rejeitada por 54,2% dos votos. Para quem quiser entender melhor os detalhes do que foi votado, este link contem o material oficial das eleições (em francês)
Por fim, o erro mais importante, é a informação de que a lei deve tratar todos iguais. Na verdade, as democracias modernas funcionam exatamente de forma contrária: a lei deve tratar as pessoas diferentes de forma diferente e na medida de suas diferenças. Isso significa que pessoas diferentes devem ser tratadas de formas diferentes, mas apenas para que possam exercer seus direitos de formas iguais. É justamente esse princípio que possibilita ao governo estabelecer alíquotas maiores de imposto de renda para uma pessoa que recebe mais, ou cobrar uma alíquota maior de IPTU de alguém que tem uma casa maior. É esse mesmo princípio também que estabelece que as mulheres podem se aposentar antes que os homens, que as crianças não podem freqüentar determinados locais, e que criminosos que cometeram crimes diferentes devem ficar presos por tempos diferentes. Se a lei não tratasse pessoas diferentes de formas diferentes, não haveria, no Brasil, os crimes de corrupção passiva, de concussão ou de prevaricação, que só podem ser cometidos por servidor público, por exemplo.
Por fim, cabe lembrar que no Brasil há também o mecanismo de expulsão de estrangeiros que aqui tenham cometido crimes. O que é diferente é que no Brasil a expulsão não é automática, mas decidida, caso a caso, pelo presidente da República (como havia sido proposto pelo contra-projeto rejeitado no referendo suíço). É o que está na lei 6.815/80, que diz que:
"Art. 65. É passível de expulsão o estrangeiro que, de qualquer forma, atentar contra a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranqüilidade ou moralidade pública e a economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais.
Parágrafo único. É passível, também, de expulsão o estrangeiro que:
a) praticar fraude a fim de obter a sua entrada ou permanência no Brasil;
b) havendo entrado no território nacional com infração à lei, dele não se retirar no prazo que lhe for determinado para fazê-lo, não sendo aconselhável a deportação;
c) entregar-se à vadiagem ou à mendicância; ou
d) desrespeitar proibição especialmente prevista em lei para estrangeiro".