“Paramilitares americanos treinam policiais brasileiros
A empresa americana Academi, que antes se chamava Blackwater, está treinando policiais militares e agentes da Polícia Federal para ações antiterrorismo na Copa.
A Blackwater ficou conhecida por agir como um exército terceirizado dos Estados Unidos, com mercenários atuando nas guerras do Iraque e do Afeganistão.
A empresa está envolvida em polêmicas. Ex-funcionários da Blackwater são acusados de terem matado 17 civis iraquianos no massacre da praça Nisour, em 2007.
Na semana passada, um grupo de 22 policiais militares e agentes federais brasileiros voltou de um treinamento de três semanas no centro da Academi em Moyock, na Carolina do Norte. O curso foi bancado pelo governo dos EUA e faz parte de uma série de ações de intercâmbio entre as forças policiais dos dois países.”
Nossa Constituição diz que podemos nos associar como bem entendermos e para quaisquer fins lícitos que desejarmos. Mas ela cria uma importante exceção a esse direito: não podemos constituir grupos paramilitares (inciso XVII do art. 5o)
Só que ela não define o que é um grupo paramilitar.
Grupo paramilitar não é qualquer grupo armado ou que obedeça uma cadeia de comando. Caso contrário, uma empresa de segurança privada, por exemplo, seria um grupo paramilitar. Afinal, tais seguranças andam armados e têm cadeia de comando.
Para descobrirmos o que é um grupo paramilitar temos que nos perguntar o que a Constituição está tentando impedir quando proíbe a criação de grupos paramilitares.
O que a Constituição está tentando preservar é o monopólio do uso da força pelo Estado de forma a que outros grupos não representem risco à perpetuação do próprio Estado.
Em outras palavras, o grupo passa a ser paramilitar quando suas ações ou objetivos ameaçam a existência do Estado através do uso da força. Ou, para ser ainda mais preciso, ameaçam a existência do governo, já que o objetivo de grupos paramilitares muitas vezes é controlar o Estado através da remoção do governo, e não aniquilar o Estado. Mas, para simplificar, vamos focar apenas no Estado.
Quando uma empresa de segurança privada é autorizada a funcionar ela o é apenas porque se subordina ao poder estatal. É isso que a diferencia, por exemplo, das milícias, que funcionam não subordinadas ao poder estatal, mas paralelas ou em contraposição ao poder estatal.
O complicador do debate surge quando começamos a pensar em tais associações não como subordinadas ou paralelas ao poder do Estado, mas como defensora do poder estatal.
Soa estranho?
Considere, por exemplo, a segunda emenda à Constituição dos EUA: “a well regulated Militia, being necessary to the security of a free State, the right of the people to keep and bear Arms, shall not be infringed” (‘uma milícia bem regulada, sendo necessária à segurança de um Estado livre, o direito do povo de manter e portar armas, não será infringido’).
A constituição americana está, em outras palavras, dizendo que milícias privadas não são necessariamente um risco ao Estado, mas uma forma de proteção desse Estado. Se o Estado não pode se proteger, cabe à população protegê-lo.
O que pode parecer uma singela diferença entre o direito americano e o brasileiro, na verdade esconde um debate filosófico muito mais profundo que, dentre outras coisas, diz respeito ao que entendermos ser o ‘Estado’.
Se o Estado é não só o território e o governo, mas também – e sobretudo – a população que habita aquele território e é representada por aquele governo, tal população obviamente tem o direito de pegar em armas para não só se proteger, mas também proteger o seu Estado.
É verdade que a segunda emenda americana nasceu do medo de uma invasão inglesa no século 18. Mas a razão pela qual ela resistiu aos últimos 225 anos – ainda que o Reino Unido tenha se tornado o principal aliado dos EUA desde então – é a crença norte-americana de que o Estado é a população, e vice-versa. Se o Estado, que é a população, está ameaçado, é um direito dessa defendê-lo. Nesse sentido, o direito das milícias não é mais do que uma forma de legítima defesa da democracia.
Mas dar à população o direito de proteger o Estado cria um risco intrínseco e permanente: se tal milícia acha que o Estado está sendo ameaçado, ela se vê no direito de protegê-lo. Mas e se ela acha que o Estado está ameaçado não por um agressor externo, mas por um interno? Por exemplo, por um governo democraticamente eleito por uma maioria de extremistas, digamos, cristãos, judeus, mulçumanos, latinos, comunistas, de extrema direita ou influenciados por grandes empresas?
Para o constituinte americano, a proteção da identificação entre população e Estado vale o risco. Em outras palavras, é melhor correr o risco de alguma milícia descontrolada ameaçar o governo do que correr o risco de a população achar de que ela e o Estado não são a mesma coisa.