“Mensalão: o perfil dos ministros que participarão do histórico julgamento” (Veja)
“FHC diz que julgamento do mensalão pode 'marcar a história' do país” (Globo)
“Julgamento histórico do mensalão começa amanhã no STF” (R7)
Abra qualquer jornal e você será bombardeado com os termos Mensalão, julgamento e histórico. O Mensalão é de fato histórico do ponto de vista político e logístico. Mas não do ponto de vista técnico. Ele julga pessoas que estavam diretamente relacionadas ao então presidente, ele põe no banco dos réus dezenas de pessoas ao mesmo tempo por centenas de crimes. Nomes conhecidos e que tiveram ou têm muito poder, influência e dinheiro. Ele é fisicamente grande. Ele é complexo no modus operandi. Mas não é tecnicamente complicado ou desbrava novas fronteiras do conhecimento jurídico.
A chamada teoria da inexigibilidade de conduta diversa que foi tão propagada semana passada pelos jornais ao ser usada por um dos advogados de defesa do caso é a mesma teoria que o mesmo advogado ensina a seus estudantes de direito penal no segundo mês de aula. Como quase tudo em direito, é uma expressão complicada para descrever algo simples: se, com arma em punho, o bandido obriga a vítima a ajudá-lo a roubar o banco, a vítima não é condenada por roubo porque ela não tinha outra opção.
O Mensalão está para o direito como um grande acidente automobilístico com inúmeras vítimas está para a medicina: chega a parar o hospital, demanda atenção dos médicos para lidarem com todos os pacientes ao mesmo tempo e tratarem adequadamente cada paciente porque vários têm sintomas de múltiplos problemas ao mesmo tempo. Mas, do ponto de vista médico, não estão se deparando com nada novo. São as fraturas, órgãos perfurados e comas de sempre. Ainda que cada paciente seja sempre único, holisticamente estão apenas lidando com variações sobre os mesmos temas. E o fato dos acidentados serem de uma banda sertaneja famosa, do ponto de vista médico, não faz com que o tratamento seja histórico. Não estão desenvolvendo novas técnicas de tratamento.
Não é a primeira vez e infelizmente não será a última vez que o STF julga um caso criminal envolvendo políticos. Os ministros parecem enfadados com o Mensalão não porque já estejam com seus votos prontos. Quase sempre o estão em julgamentos grandes; injustiça seria se esperássemos que analisassem os autos e formulassem seus votos em uma semana. Embora ninguém admita abertamente, o julgamento em plenário serve para checarem se esqueceram algo ou erraram no entendimento da lei ou dos fatos.
Eles estão enfadados porque, embora vultoso e complexo, esse não é um julgamento particularmente interessante para eles. São críticos gastronômicos obrigados a digerirem quilos de arroz com feijão ou médicos fazendo a mesma cirurgia de sempre.
O fato de haver milhares de jornalistas do lado de fora do hospital não faz com que a cirurgia se torne tecnicamente mais interessante. O que jornalistas acham interessante (fatos) e juristas acham interessante (direito), raramente fascinam ao mesmo tempo. Para o jurista, o homem que morde o cachorro é apenas mais um caso de maus-tratos de animais.
Compare o Mensalão com o impeachment do então presidente Collor. Era o primeiro caso do tipo na história, ninguém sabia como interpretar as leis. Com o andar do processo, descobríamos que as leis existentes não eram claras e geravam mais dúvidas do que respostas (por exemplo, se o presidente renunciasse – como o fez – minutos antes do julgamento, deveríamos ainda assim julgá-lo como se continuasse presidente?) As novidades técnicas elevavam a adrenalina jurídica.
O Mensalão, é quase um dejà vu jurídico: aplicação de leis conhecidas a milhares de fatos alegadamente cometidos por dezenas de suspeitos. Se os fatos forem verdadeiros, as leis são, para os padrões brasileiros, claras.
Daí alguns ministros perderem a paciência quando os advogados pedem que parte dos acusados seja julgada em outras instâncias: isso já foi decidido inúmeras vezes, inclusive nesse mesmo processo; se não há apresentação de novos argumentos técnicos, os resultados são óbvios. O que os advogados fizeram é o que nas faculdades de direito os alunos chamam jocosamente de ‘ius esperniandis’: o direito de advogados insistirem em argumentos inócuos. Politicamente interessante, tecnicamente enfadonho.
Óbvio que há sempre a esperança de que algo tecnicamente inovador apareça no meio do caminho mas, pelo andar da carruagem, é improvável. Do ponto de vista técnico, o que realmente seria interessante de assistir é justamente aquilo que o STF e sociedade querem evitar a todo custo: o que fazer se ministros aposentarem no meio do julgamento?