“Promotoria processará Estado de SP por enterrar pessoas com RG como indigentes
Um grupo do Ministério Público de São Paulo, entre eles o procurador-geral Márcio Elias Rosa, se reúne na tarde desta terça-feira (22) para definir os detalhes de uma ação contra o Estado pelo enterro de pessoas como indigentes (...)
Conforme a Folha revelou hoje, nos últimos 15 anos cerca de 3.000 pessoas foram enterradas em valas públicas com indigentes mesmo estando identificadas, muitas delas com o RG no bolso.
Fará parte da reunião a promotora Eliana Vendramini que descobriu essa prática adotada pelo SVO (Serviço de Verificação de Óbitos), órgão ligado à Faculdade de Medicina da USP, que enterra os corpos não reclamados no prazo de 72 horas (...)
Todos as cerca de 3.000 famílias que tiveram parentes enterrados desta forma serão representados nesta ação que prevê a condenação por danos morais. Em caso de vitória na Justiça, caberá as famílias apenas a execução da sentença e aí, os valores serão definidos para Justiça. Essa será uma das maiores ações movidas pela Promotoria de São Paulo.”
Em direito, nenhum tema aparece com mais frequência do que a morte. Seja através da proteção da vida dada pelo direito penal, da proteção da saúde e da velhice dada pelo direito previdenciário, às disposições sobre como lidar com as consequências da morte ditadas pelo direito civil, e assim por diante. O direito não é mais do que o reflexo de nossas vidas e nossas vidas, queiramos ou não, são modeladas em grande extensão pela morte de quem amamos e pela expectativa de nossas próprias mortes.
Embora o cadáver seja um objeto para o direito, a lei não pode fechar os olhos para as emoções associadas àquele objeto que em algum momento abrigou um ser humano.
É por isso que a lei protege o cadáver de forma especial. Muito mais do que ela protege outros objetos, como uma mesa ou uma cadeira.
Daí ser crimes específicos vilipendiar ou ocultar um cadáver, por exemplo. E daí a razão de mesmo o pior dos criminosos ter direito à permissão de saída quando seu cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão falece.
Dizer adeus ao corpo de quem amamos é um ato de encerramento de um ciclo emocional essencial na vida de todos nós. Basta observarmos como parentes de desaparecidos políticos durante a ditadura ainda sofrem por não saberem onde os corpos de seus entes queridos foram deixados; como parentes de passageiros de aeronaves acidentadas em alto mar, mesmo cientes de que seus entes queridos estão mortos, desejam resgatar seus corpos; ou como familiares de militares sempre querem repatriar os restos mortais de seus entes queridos que pereceram na guerra.
Os rituais da morte, como funeral e enterro servem para confortar não o morto, mas nós, os vivos, que tanto precisamos dizer adeus a quem amamos.
Sem dizermos adeus, fica o vácuo emocional. Sofremos. E o corpo faz parte do ritual de adeus.
E é esse sofrimento – que em direito se chama dano moral – que pode levar à responsabilização do Estado por ter sido negligente no tratamento dos familiares no caso da reportagem acima.
Ao deixar de tentar localizar os familiares do morto quando sua identificação era certa ou provável, o Estado causou um sofrimento desnecessário a essas pessoas que ou ainda procuram seus parentes na esperança de encontrá-los vivos, ou mesmo sabendo que estão mortos, não sabem onde o corpo está.
Sim, é verdade que o Estado não poderia manter tais corpos indefinidamente sem enterro, o que certamente geraria problemas de saúde pública.
Mas há duas razões pelas quais, se os dados da reportagem estiverem corretos, a solução encontrada pelo Estado foi desproporcional: em muitos casos ele sabia quem era o morto e bastava cruzar informações entre o corpo identificado e quem estava procurando pelo corpo. Ou seja, seus sistemas e procedimentos não eram adequados.
Mas mesmo que não se soubesse quem estava procurando pelo corpo, se o Estado consegue identificar o morto, ele não só pode como deve enterrar o corpo com a devida identificação e individualização do local de enterro para que quando finalmente se saiba quem são seus familiares, esses possam ser informados onde os restos mortais estão enterrados.