“Criação de tribunais sofre resistência no Congresso Nacional
Em uma operação que conta com a simpatia do Palácio do Planalto, integrantes do PMDB vão tentar barrar no Congresso a criação de mais quatro TRFs (Tribunais Regionais Federais) no país (...)
Segundo essa interpretação, a iniciativa da criação de tribunais teria que partir do Judiciário, argumento também defendido pelo governo (...)
Com a operação, o Congresso não promulgaria a PEC, impedindo sua entrada em vigor.
A manobra é rara. Um dos únicos registros de não promulgação pelo Congresso ocorreu em 2008, na emenda que mudava a composição das Câmaras de Vereadores do país. Na ocasião, a Câmara dos Deputados se recusou a assinar a proposta por discordar das mudanças feitas pelos senadores (...)
‘A Constituição fala que a criação e extinção de tribunais inferiores só pode ser feita por projeto de lei de autoria do Superior Tribunal de Justiça. Isso faz parte da independência do Poder Judiciário’, disse o senador Pedro Taques (PDT-MT), que é procurador de Justiça.
Representantes de Estados beneficiados com a criação dos tribunais, ao contrário, afirmam ser competência do Congresso alterar a Constituição mesmo nos temas de interesse de um outro Poder (...)
'A PEC não é inconstitucional, cabe ao parlamentar alterar a Constituição', disse Sérgio Souza (PMDB-PR).”
Ontem explicamos que a Constituição não pode ser declarada inconstitucional, mas que o processo de emenda em si pode ser declarado inconstitucional. É a essa segunda parte que a matéria acima se refere.
O argumento sobre quem pode propor uma PEC, no caso da PEC dos TRFs, é muito controverso porque a Constituição é clara sobre quem tem iniciativa de apresentar uma PEC: o presidente da República, no mínimo um terço dos parlamentares, ou a maioria das assembleias legislativas das unidades federativas (art. 60). A lista não faz qualquer menção ao STF. O STF é citado na apresentação de projetos de leis (normas que estão abaixo da Constituição), e não na apresentação de PECs.
Logo, o debate é se a PEC pode modificar algo que foi delegado pela própria Constituição a uma lei inferior. Algo como: pode o patrão (Constituição) fazer algo que havia delegado a seu empregado (lei), ou seja, pode revogar sua própria delegação ou ele fica para sempre impossibilitado de volta atrás?
Quem vai decidir isso é o STF. Sabemos qual o ponto de vista do presidente do STF, mas não sabemos o ponto de vista dos demais magistrados. Seguindo princípios puramente democráticos – a soberania da Constituição – é difícil aceitar o argumento de que a PEC não poderia mudar uma autorização/delegação feita pela Constituição. Afinal, é justamente para isso que existem as PECs. Ainda mais porque a Constituição em nenhum momento diz que a competência é exclusiva do STF.
Já no caso citado pela matéria – a PEC dos vereadores – o problema foi outro: a mesa da Câmara se recusou a promulgar a PEC depois de ele ter sido votada e aprovada.
Uma PEC, ao contrário de uma lei infraconstitucional, não passa pelo processo de sanção ou veto do presidente da República. Uma vez aprovada, ela é promulgada e publicada pelas mesas das duas casas do Congresso. No caso citado acima, a mesa se recusou.
Mas aqui há um detalhe interessante: ainda que as mesas tenham a obrigação de promulgar e publicar, não há mecanismo externo que as obriguem a fazer isso. O STF não tem poder de obrigar o Congresso a legislar, e a promulgação e publicação são passos dentro do processo legislativo. Ou seja, o STF não tem poder de obrigar as mesas a promulgarem a publicarem a PEC aprovada. Apenas os próprios congressistas têm poder para isso. Se os deputados resolveram deixar como estava...
Outro argumento é o caso do art 2o da Emenda Constitucional 3, de 1993, que previa a criação do IPMF, que depois foi considerado inconstitucional. O problema em tentar usar esse argumento para dizer que a PEC dos TRFs é inconstitucional é que o art. 2o da Emenda Constitucional 3 não foi incorporado ao texto constitucional. As emendas ao texto estavam todas no art 1o da PEC; os demais artigos daquela PEC não modificaram o texto da Constituição. Logo, o texto dos demais artigos continuava subordinado às limitações impostas pela Constituição.
No caso da PEC dos TRFs, o texto foi incorporado à Constituição (disposições transitórias). Ou seja, os dois casos são fundamentalmente diferentes.
Mas dezenas de leitores entraram em contato perguntando algo na linha do ‘mas se o Congresso é incompetente e o STF é bem preparado, não é melhor deixar o STF decidir que a PEC é inconstitucional?’.
Em outras palavras, não seria melhor adotarmos um regime aristocrático do Judiciário? (aristocracia significa justamente isso: o governo das elites. No caso, da elite jurídica).
Aqui é questão de opinião, e cada um formula a sua. Do ponto de vista jurídico, contudo, há uma razão pela qual as democracias restringem o poder do Judiciário de dizer que uma constituição é inconstitucional: dos três poderes, o Judiciário é o único que não é eleito democraticamente. Ele não representa ninguém além de seu próprio pensamento. Basta ter entre 35 e 65 anos, ser cidadão brasileiro de notório saber jurídico e reputação ilibada (embora até isso seja subjetivo: nas última três décadas tivemos profissionais com menos de uma década de formado ter chegado a um tribunal superior).
Dos três poderes, o mais representativo é justamente o Congresso. Se temos um Congresso no qual não confiamos, a culpa não é da democracia, mas nossa, que elegemos os congressistas.
A opção pela aristocracia – assim como pela ditadura – é uma opção legítima dentro de uma democracia (novamente: Hitler foi eleito democraticamente).
O perigo, contudo, é optarmos por uma aristocracia para resolver o problema da incompetência do Congresso. Seria como usar um machado para abrir a porta: pode até funcionar, mas ele não foi feito para isso e o resultado pode não ser o esperado. Pior: quando resolvermos fechar a porta, já não haverá porta a ser fechada.
Mas então quais soluções se agora nem os deputados querem a PEC que acabaram de aprovar? Sim, deixar de promulgar é uma solução, embora seja igualmente controversa. Estaríamos criando uma aristocracia das mesas do Congresso: os parlamentares podem aprovar, mas a regra não é promulgada porque a mesa se recusa: ou seja, apenas aquilo que os sete integrantes da mesa querem pode ser aprovado. Trocaríamos uma aristocracia de 11 magistrados por uma de 7 deputados.
Uma solução muito mais democrática – e que poria fim imediato a controversa -, é simplesmente aprovar outra PEC que modifique a redação da PEC que acabaram de aprovar. Mas, para isso, três quintos da duas casas precisam concordar que foi um erro aprovar a PEC na semana passada. E há um argumento para convencer os indecisos: eles podem até não gostarem da ideia de desfazerem o que fizeram, mas a alternativa é perigosa: correr o risco de ver o STF dizendo que o Congresso não tem o poder que acha que tem. Na prática, transformar o Congresso em um poder de segundo nível.