“Vídeo flagra policiais espancando jovens em delegacia de São Paulo
Imagens gravadas na delegacia de Caieiras, na Grande São Paulo, mostram dois jovens apreendidos sendo interrogados sob ameaça e agressões, como tapas no rosto.
A Folha apurou que o grupo era formado por policiais civis e guardas municipais (…)
No vídeo, é possível contar ao menos seis pessoas em torno dos dois jovens, que estão algemados e em pé. Ao ser agredido com tapas no rosto, o jovem ouve de um deles: ‘Tem que apanhar, rapaz, apanhar e apanhar!’.
Na sequência, um dos policiais pergunta: ‘cadê o patrão?’, em referência a um suposto chefe do tráfico. Com o silêncio do rapaz, o policial se dirige ao amigo e puxa seu cabelo para também dar tapas no rosto.”
Em um país onde a violência social é um problema permanente, é fácil simpatizar com a ideia de que criminoso merece apanhar. Afinal, se ele nos faz sofrer e não respeita os direitos de suas vítimas, por que deveríamos respeitar seus direitos? Por que ele, que iniciou a violência, merece mais respeito do que nós, vítimas dela?
O torturador é apenas o condutor de nossas frustrações e desejos de vingança e tem os mesmos objetivos e interesses que o resto da sociedade, certo?
Infelizmente, não. O policial que tortura tem objetivos diferentes da sociedade que coaduna com seu comportamento. Eles apenas parecem estar do mesmo lado, mas têm objetivos diferentes.
A violência policial inverte a lógica da culpa: primeiro presume-se que o suspeito é culpado e usa-se a violência para extrair dele a confissão necessária para sua condenação.
Quem defende a tortura policial diz que muitas vezes não há possibilidade de condenação sem usarmos a tortura para obter a prova.
O primeiro problema está justamente nisso. O policial tortura para obter prova. Mas a sociedade não quer a prova, ela quer a verdade. Para a sociedade, a prova é um apenas um instrumento de convencimento da verdade. Mas, para o policial que tortura, ela se torna o fim em si. E, como um fim em si, ela justifica os meios.
Ademais, seguindo essa lógica, depois de condenado – quando já se tem certeza que fulano é culpado – o policial poderia sempre torturar. Os interesses da sociedade e do torturador novamente divergem: a sociedade quer resolver o crime e punir de forma estruturada, mas a tortura passa a ser um método de retribuição e justiça aleatória.
O aparelho estatal construído justamente para garantir a punição estruturada – separação entre quem acusa e quem pune, códigos, devido processo etc – é ignorado. O torturador passa a ser investigador, juiz e algoz de sua justiça aleatória.
Além disso, sob tortura, qualquer pessoa confessa qualquer coisa, mesmo aquilo que não é verdade. Ela diz aquilo que é necessário para cessar o sofrimento e não aquilo que é relevante para apurar a verdade dos fatos.
O torturador não se importa com os falsos positivos (confissões daquilo que não é verdade). O que ele não quer é um falso negativo, ou seja, que o suspeito negue aquilo que é verdadeiro. A tortura gera uma quantidade enorme de falsos positivos, mas raramente deixa escapar falsos negativos. Em outras palavras, o inocente confessa aquilo que não é verdadeiro, mas o culpado raramente vai deixar de confessar aquilo que é verdadeiro. E esse é um resultado que o policial que tortura está normalmente preparado para aceitar.
Já a sociedade não quer apenas evitar falsos negativos. Ela quer, sobretudo, evitar falsos positivos (o famoso ‘melhor absolver mil culpados do que condenar um inocente’).
Enquanto o objetivo do policial que tortura é apresentar um culpado o mais rápido possível, o da sociedade é encontrar o verdadeiro culpado o mais rápido possível. Novamente, os objetivos divergem.
Isso não quer dizer que sociedade e polícia estejam de lados opostos, e muito menos que a sociedade que condena o policial torturador está coadunando com o criminoso. Pelo contrário: a sociedade que coaduna com o torturador é que está coadunando com um criminoso. Se a sociedade coaduna com o torturador, ela está não só se opondo ao policial honesto que respeita os limites da lei, mas está colocando a vida desse policial em permanente perigo: afinal, ele terá criminosos como colegas.
Tampouco quer dizer que quem é torturado é necessariamente inocente. Ele é vítima de um crime, mas pode bem ser culpado de outro. Mas, ao tornar o culpado também uma vítima, o policial que tortura acaba tornando o trabalho de descoberta da verdade pela sociedade e a consequente punição do culpado ainda mais difícil porque possibilita ao culpado-vítima usar a agressão sofrida injustamente para defender-se. Pior: muitas vezes, para inspirar outros criminosos, já que a possibilidade de ser absolvido aumenta exponencialmente, uma vez que muitas das provas obtidas não poderão ser usadas para condená-lo.